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Artigo

Somos Todos Macabéas
21/06/2019 Priscila Germosgeschi

"Macabéa sou eu, é você, pode ser qualquer um de nós, solitários em meio às multidões apressadas, tentando encontrar nosso lugar no mundo e na vida de alguém, desejosos de reconhecimento, cravados pela dor das negações diárias, das rejeições, da incomunicabilidade torturante, marcados pelas paixões investidas inutilmente."

Clarice Lispector soube, como poucos, utilizar a língua portuguesa em favor de textos densos, profundos, que articulam de forma notável suas idéias. Tarefa árdua escolher justamente uma personagem como Macabéa, imigrante nordestina desajustada no Rio de Janeiro, para protagonizar um romance: apática, vocabulário limitadíssimo, a nordestina, sob um olhar desavisado, não teria nada a oferecer em termos literários. E eis que Clarice eleva essa aparente nulidade a um alto nível reflexivo, a partir da forma magistral como conduz a narrativa e joga com as palavras e seus sentidos. O leitor é levado a perscrutar o íntimo pseudovazio de uma personagem que abarca em si características comuns a tantos de nós - e imprimir essa identificação do leitor com Macabéa é vital na construção textual da obra. Em “A hora da estrela”, o cruzamento de narrativas diversas – a de Macabéa, a do narrador-escritor (que se dá a conhecer pelos comentários que tece) e a do próprio ato de escrever (nó-síntese de todas elas) – articula a discussão que permeia as escrituras tanto da obra, como da personagem e do próprio narrador. A diversidade dramática decorre, pois, das múltiplas e complexas relações aí envolvidas: entre o escritor e seu texto; entre o escritor e seu público; entre o escritor e a deslocada Macabéa. E a linguagem, nessa teia, emerge como uma personagem em crise, indagando tópicos reflexivos, tais como a existência humana e os laços sociais. Ao longo da narrativa, o narrador-escritor identifica-se com Macabéa, a qual parece muitas vezes se isentar de sentido à medida que vai meticulosamente sendo tratada sob o estigma da feiúra, do ridículo. E é aí que que reside uma das chaves que alavancam nossa proximidade com essa pequenez instigante: muito provavelmente, o narrador busca por encontrar, nessa parca extremidade, algum resquício de estrela, de esplendor – uma tarefa diária no mundo real. Macabéa, no entanto, como tantos outros Pedros e Marias vida afora, parece desprover-se até mesmo de uma experiência de vida capaz de ser registrada em memória, haja vista sua proveniência: órfã de pai e mãe, foi criada sob agrssões pela tia. Sua índole passiva a leva a se interessar por palavras e conceitos (“mimetismo”, “efeméride”, “conde”) que, descontextualizados, não a conduzem a lugar nenhum – ah, essa incomunicabilidade tão presente em nossas vidas. Macabéa cultua as grandes estrelas de cinema, sentindo-se fascinada pelos anúncios tários; tudo à base do cachorro quente com coca cola. Além disso, o despreparo da nordestina para enfrentar as dificuldades da vida torna-se patente em seu cotidiano: fracassa em seu trabalho de datilógrafa, assim como no amor. Olímpico (também nordestino), sua única conquista amorosa, escapa-lhe facilmente das mãos para as de sua colega de trabalho. Enquanto engendra o enredo narrativo, o narrador-escritor assume três presenças distintas, como se ele próprio se visse incapaz de estabelecer uma ordem pragmática, frente ao caos intrínseco à dinâmica das pessoas e de suas relações, frente à necessidade de se extrair movimento desse íntimo tão frágil e aparentemente raso. Primeiramente, conduz a ação e a reflexão a partir do próprio monólogo, o qual se veste de impulso irônico, na medida em que acirra a tragicidade. Em um segundo momento, releva-se o mero relato, ainda que sem perder de vista as interferências monologais. Em sua terceira forma de presenciar os fatos, o narrador-escritor acaba por emprestar aos outros a palavra (como na conversa entre os nordestinos no banco da praça), embora sem se ausentar das cenas. Tais desdobramentos do narrador, ressalta-se, encontram-se intimamente intrincados no enredo textual. Esse vai e vem do foco narrativo acaba revelando as hesitações de sua onisciência diante do desconhecido, daquilo que se quer desnudar em toda sua essência – buscar essa essência em uma personagem como Macabéa implica uma viagem de resignação, dor e libertação. claricedj.jpg De qualquer maneira, a alagoana Macabéa, ao final, aciona-se, torna-se sujeito agente, em vista das previsões de Madama Carlota, e experimenta as antevisões por esta declaradas – “a cartomante lhe decretara sentença de vida”. Àquela altura, a nordestina já se impregnara daquela impossível felicidade preconizada quando de seu atropelamento. O acidente, pois, não poderia mais vencê-la; ou seja, o “sim” - que pretensamente tenta finalizar o livro – acaba por nos remeter à afirmação inicial da obra (“tudo no mundo começou com um sim”), como que nos convidando a dar continuidade à decifração do enigma, a (re)inventarmos o mundo em contínuo movimento. Como se vê, a personagem toma as dimensões de um substantivo coletivo, plural. Macabéa sou eu, é você, pode ser qualquer um de nós, solitários em meio às multidões apressadas, tentando encontrar nosso lugar no mundo e na vida de alguém, desejosos de reconhecimento, cravados pela dor das negações diárias, das rejeições, da incomunicabilidade torturante, marcados pelas paixões investidas inutilmente. Macabéa está presente nos “não” e nos “sim”, em cada amanhecer, quando optamos por levantar e viver, ou mesmo quando chega a noite derradeira, nossa hora de morrer... © obvious: http://obviousmag.org/pensando_nessa_gente_da_vida/2015/somos-todos-macabeas.html#ixzz40HXAGQXm Follow us: @obvious on Twitter | obviousmagazine on Facebook  

O NORDESTINO E A HORA DA ESTRELA

Um sem fim de lamentos perpetuou-se pela internet logo após a consumação da reeleição da presente da república do Brasil. O nordestino como alvo predileto, viu-se amaldiçoado pela culpa de ter exercido e colaborado com um ato condenável aos olhos de uma parcela da sociedade, que supostamente injustiçada, seria agora sentenciada a viver o apocalipse que terá sua iminência no ano vindouro.
06f0c4f8af.jpg Quando Clarice Lispector lançou “A hora da Estrela” no final dos anos 70, povoou a mente do leitor com a presença insossa – e ao mesmo tempo marcante – de dois nordestinos que viviam no Rio de Janeiro. Estavam em busca não se sabe do que. ...Mas um dia viu algo que por um leve instante cobiçou: um livro que Seu Raimundo, dado a literatura, deixara sobre a mesa. O título era “Humilhados e Ofendidos”. Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social. Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar? O senso comum admite que a migração feita para o sudeste e sul se deveu ao fato das más condições de vida e a falta de horizontes existentes em uma das mais esquecidas regiões do país. O tipo de política de oligarquia vivido no nordeste fez do povo massa de manobra. Durante séculos, a exploração da terra e do homem destinou ao lugar, uma incoerência em relação ao resto do país, que se desenvolvia tecnologicamente. Com o passar dos anos, grande número de cidadãos brasileiros continuaram a migrar para outras regiões, levados pelos mesmos motivos e alguns deles, carregavam a inocência de crer que encontrariam trabalho e salário dignos. Capim na grande cidade do Rio de Janeiro. À toa. Quem sabe se Macabéa já teria alguma vez sentido que também ela era à-toa na cidade inconquistável. A inocência, presente também em Macabéa, personagem principal do romance, transformou a imagem do nordestino em algo quase que insignificante, rasteiro, mentecapto, incapaz de esboçar questionamentos maiores, lutar com garra pela própria vida. Esta imagem – totalmente desconectada da autoimagem daquele povo, que sempre se intitulou como “sobretudo um forte” – ganhou força e fez da massa trabalhadora da região sudeste, mais especificamente de São Paulo e Rio de Janeiro, o novo escravo. A rotina desgastante, o trabalho feito apenas pelo baixo salário, a ausência de vida social, transformaram-se na marca registrada deste trabalhador. Foi como se num instante se metamorfoseasse em capim que brota do nada no chão, mas que ao mesmo tempo parece insignificante, crescendo e vivendo à toa. ...Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos. Diferente dos personagens do romance, o nordestino de hoje, apesar das inúmeras dificuldades impostas por condições políticas e climáticas, não pode mais ser representado pelos personagens de Lispector. Mesmo que, comparativamente a outras regiões, ainda haja no nordeste grandes desvantagens, não há a possibilidade de permanecer na ignorância de outrora que permitiu atrocidades como o voto de cabresto. Estamos em outros tempos e a tecnologia, juntamente com a informação, levou ao povo conhecimento suficiente para transformá-los em cidadãos, no mais completo sentido etimológico. Há no nordeste desenvolvimento em educação (muito boas universidades), além de investimentos em outros setores. A presença de deficiências também há, assim como em qualquer outra região do país. Apesar disso, fez-se crer nos últimos dias, que os não-nordestinos e não-nortistas (os nortistas são mais esquecidos ainda) compartilham de uma experiência coletiva que vem trazendo uma onda de ódio gratuito na web. Chamar de xenofobia pode parecer grave e incoerente, uma vez que o xenofóbico tem aversão a pessoas e coisas estrangeiras. Seriam os nordestinos estrangeiros? Por mais absurdo que pareça este termo é suficientemente adequado. A cultura e tudo que ela engloba, como o sotaque, a culinária, a literatura e a música, aparentemente vêm levando ao povo do sul e sudeste a crença que não pertencemos a uma mesma nação. O simples fato de segregar cidadãos de um mesmo país dentro de um mesmo texto, por si só, revela-se absurdo. Quando eu era menino li a história de um velho que estava com medo de atravessar um rio. E foi quando apareceu um homem jovem que também queria passar para a outra margem. O velho aproveitou e disse: – Me leva também? Eu bem montado nos teus ombros? O moço consentiu e passada a travessia avisou-lhe: – Já chegamos, agora pode descer. Mas aí o velho respondeu muito sonso e sabido. – Ah, essa não! É tão bom estar aqui montado como estou que nunca mais vou sair de você! O argumento mais utilizado nos absurdos fatos teve como cerne a política assistencialista. Acredita-se erroneamente, que todo nordestino é beneficiário do programa Bolsa Família, e que isto faz dele um devedor de favores. Quem compartilha desta opinião desconhece e subestima o saber e a consciência de um povo que raramente obteve atenção de qualquer grupo político de âmbito nacional. Independentemente do partido ser o X ou Y, estava evidenciado nas propostas de campanha de ambos que este tipo de política iria permanecer. Então o que levou alguns eleitores de Y a crer que ele não cumpriria sua palavra e destinaria ao nordeste a velha condição de esquecimento? Seria esta a vontade de alguns eleitores de Y? A resposta está explícita no Twitter e no Facebook. De cara limpa, despejaram ódio contra um povo que apenas influenciou em parte o resultado final. O que levou o cidadão brasileiro a escolher o político X, foi algo que deve estar entranhado em sua própria consciência. Em sua visão, aquele político representava algo de positivo. A falta de bons candidatos era evidente e a maior prova disso foi o acirramento da disputa. Não havia alguém realmente capaz de suportar o peso das palavras “honesto” e “bom”. A luta em busca do poder a todo custo evidenciou-se. A escolha que a maioria fez – e sobretudo o nordeste – foi a de permanecer apoiando quem de certa forma olhou para aquela região com outros olhos. Há quem encare isso como servilismo, mas só quem faz parte de uma realidade pode atestar a diferença que uma sutil mudança pode desencadear. Vejo a nordestina se olhando ao espelho e – um rufar de tambor – no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. A incapacidade de enxergar o próprio rosto ao ver o nordestino dá ao xenofóbico, a vaga sensação de superioridade. Mas a sensação é volúvel, e de uma hora para outra o gaúcho gargalhará assistindo e aplaudindo “O auto da Compadecida” do paraibano Ariano Suassuna. O paulista refletirá sobre a genialidade de Augusto dos Anjos quando estiver lendo “Eu e outras poesias”. O carioca dançará em transe ao ouvir a inteligência musical do pernambucano Lenine. O estudante catarinense certamente se orgulhará ao ler “O Navio Negreiro” do baiano Castro Alves ou “Gabriela Cravo e Canela” de Jorge Amado. Todos rirão das piadas dos cearenses Chico Anysio, Tom Cavalcante, Renato Aragão... Porque, por pior que fosse sua situação, não queria ser privada de si, ela (Macabéa) queria ser ela mesma. Ao final, após estarem permeados de influências nordestinas – inúmeras não citadas no presente texto –, haverá o momento em que todos perceberão que fazem parte sim, de uma mesma nação. OBSERVAÇÃO: o autor não é petista, sequer tucano

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