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Artigo

Povos Da Floresta X Desenvolvimento
21/06/2019 Priscila Germosgeschi

Reflexões possíveis sobre povos da floresta versus desenvolvimento

Aceitar o convite para viver o real pode nos deixar à mercê de uma situação pouco entendida hoje por quem preza a dialética, o sim ou não, o preto ou branco, o certo ou errado. No real tem o momento que é vivido. Não tem certo nem errado, mas tem o que está acontecendo. As circunstâncias podem driblar as certezas, maquiar as paixões, nublar tendências e, acima de tudo, fazer refletir, o que muito me afeta.

 

Estava pronta para escrever sobre a luta dos povos indígenas, que hoje (16) teve um round em Brasília. O estado do Mato Grosso teve dois pedidos de indenização negados pelo STF para receber uma indenização  da União pela desapropriaçãode terras do Xingu para demarcação de territórios indígenas. Os povos de várias etnias que estavam  em vigília na Praça dos Três Poderes comemoraram, dançando. As terras são dos índios.

 

A frustração ficou para os quilombolas e outros indígenas que estavam querendo ver logo julgado o tal Marco Temporal, uma tese que o STF interpretou em 2009 e que está voltando agora, servindo a interesses da poderosa bancada ruralista. A tese serviu como argumento do Supremo à época,  salvou os povos habitantes das terras indígenas Raposa do Sol de perderem o direito a seus territórios. Ela diz mais ou menos o seguinte: só tem direito à terra os povos indígenas que estivessem ocupando-a até o dia 5 de outubro de 1988, data da Constituição, lei máxima que dá aos índios esse direito. Se é assim, todos os que lá estavam depois disso terão que ser expulsos?

 

Bem, até agora a discussão sobre o Marco, que também afeta os quilombolas, não foi julgada, porque o ministro que estaria à frente disso, o Dias Toffoli, não pôde comparecer hoje. Mas isso não significa que o caso esteja fechado.  Se o STF entender que tem que ser assim e o governo decidir levar adiante a questão, muitos povos da floresta ficarão sem território. A troco do quê? Do desenvolvimento, traduzido em: exploração de terras para a pecuária, para a soja, para a agricultura.

 

Nesse momento, fiz um pequeno giro na minha rota. Não é agradável aos ouvidos de quem estuda com vigor a questão do aquecimento global, os impactos provocados por tais atividades à natureza, à vida de povos que vivem da floresta e na floresta. Mas o real pode espantar, ampliar o pensamento. E fui me lembrando de algo que havia lido no livro “Diário da Floresta”, de Betty Mindlin (Ed. Terceiro Nome), economista e antropóloga que durante anos fez pesquisa em terras indígenas. Num dos trechos ela conta como foi encontrar as terras que os colonos foram obrigados a deixar para quem de direito ocupá-las, ou seja, os índios:

 

“Defendemos muito que a terra fosse apenas indígena, direito dos primeiros habitantes. Exigimos com veemência do governo que os colonos fossem retirados. Ao ver a triste condição social desses trabalhadores rurais destituídos, que ignoravam ser invasores e que o governo brasileiro estimulou a tomar o que era alheio, sua causa também mobiliza: é preciso um movimento para assentá-los em terras que não sejam dos índios”, escreve ela.

 

Causas que mobilizam a todos nós. Sejam indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais... são seres humanos e estão no pé da pirâmide social, num sistema que dificulta viver com dignidade se não estiver dentro dele. É este o real. Há um outro olhar possível, portanto, até mesmo para a causa de demarcação das terras indígenas, embora, como bem lembre Betty Mindlin, a defesa de que a terra seja apenas dos primeiros habitantes seja urgente.

 

Já que estamos tratando de um bem natural comum, será que é devaneio imaginar que a terra possa ser dividida entre aqueles que mais precisam dela para viver? Entregar a grandes empresas, em nome do desenvolvimento, da geração de renda e emprego, não está dando certo, como se tem visto pelos desmatamentos e pelo acúmulo de terras degradadas que tais empreendimentos vão deixando para trás.

 

Se aqui no Brasil houve uma vitória -  ao menos parcial -  dos indígenas, na Bolívia a situação não é a mesma. O presidente Evo Morales disse sim ao desenvolvimento, promulgando uma nova lei que abre caminho para uma estrada de 300 quilômetros passando no meio do Território Indígena Isiboro Sécure  e do Parque Nacional conhecido como Tipnis. A estrada vai dividir o Parque ao meio e tirá-lo da situação de “protegido” que havia conseguido em 2011.  Estudos científicos dão conta de que, com a abertura da estrada, daqui a 20 anos 65% da reserva de Tipnis vai desaparecer.

 

“A política estatal está focada em fomentar megaprojetos ou atividades extrativistas, e isso vai gerar choques com tradições lógicas do modelo de desenvolvimento de tais comunidades”, alertou Jorge Campanini, pesquisador do Centro de Documentação e Informação da Bolívia (Cedib) em entrevista ao jornal “La Prensa”.

 

“El Diario”, outro jornal boliviano, lembra que dezenas de milhares de árvores virão abaixo com a abertura da estrada. Por conta disso, as chuvas também vão se escassear e ... adivinhem? Os povos de Cochabamba e da parte ocidental de La Paz, que são justamente os mais pobres, é que vão ser imediatamente impactados.

 

A dificuldade é a mesma de sempre. O presidente se vê pressionado pelo mercado a expandir as condições financeiras do país e, para isso, só encontra um jeito: invadir terras, abrir estradas, cavar minas, perfurar poços para encontrar petróleo. São os símbolos maiores, hoje, do desenvolvimento, que vão contra o bem viver. Entregar terras indígenas, preservadas, nas mãos de ruralistas, que estarão ali certamente também em nome do progresso, é a mesma coisa.

 

O que ocorre, geralmente, é que o progresso não chega aos mais pobres, pessoas que se veem obrigadas a ceder seus espaços e têm a vida toda mudada por conta disso.

 

Penso se não está na hora de ouvir os muitos especialistas que entregam estudos sobre um outro tipo de desenvolvimento. É possível, basta querer enxergar em outras direções.

 

Foto: AP Photo/Eraldo Peres

Fonte: http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/reflexoes-possiveis-sobre-povos-da-floresta-versus-desenvolvimento.html    

Marco temporal: STF pode barrar abusos contra indígenas e quilombolas

O julgamento que começa nesta quarta-feira é essencial para romper com as práticas de discriminação racial no País

O Supremo Tribunal Federal (STF) começa nesta quarta-feira 16 o julgamento de quatro ações que podem aprofundar o quadro de violações e retrocessos sobre os direitos territoriais e socioambientais no Brasil. As ações versam sobre: a constitucionalidade do decreto que estabelece procedimentos de demarcação de territórios quilombolas (ADIn3239); a nulidade de títulos de particulares que ocupavam a terra indígena Ventarra/RS (ACO469); e o direito do estado doMato Grosso ser indenizado por alegada desapropriação de terras em razão da demarcação pela União das terras indígenas Parque Indígena do Xingu (ACO362) e Nambiquara/MT (ACO366). Uma avaliação geral aponta que, ainda que os julgamentos resultem positivos para manter o status quo das respectivas áreas demarcadas, podem prejudicar procedimentos administrativos de demarcação de indígenas que aguardam conclusões, e futuros casos judiciais. O receio é de que, tal como o parecer assinado por Michel Temer no mês de julho – que orienta a administração a aplicar condicionantes do caso Raposa Serra do Sol restritivas de direitos a todos os casos de demarcação de terras indígenas – os julgamentos do STF sejam peças de um perverso quebra-cabeças de interesses encomendado para consolidar a chamada tese do marco temporal no Brasil. Essa tese visa restringir genericamente o direito constitucional de demarcação de terras e territórios tradicionais de povos indígenas e comunidades quilombolas, caso não comprovem a ocupação das áreas reivindicadas na data da promulgação da Constituição Federal de 1988. Isso desconsidera os processos de esbulho territoriais sofridos por estas comunidades, muitas vezes pela mão do Estado. Renomados juristas e acadêmicos já esclareceram que tal restrição não está prevista na Constituição de 1988 e, de fato, contraria o histórico de reconhecimento dos direitos territoriais indígenas já previstos no ordenamento jurídico nacional desde pelo menos 1934. Após sua visita ao Brasil em 2016, Victoria Tauli-Corpuz, relatora especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, afirmou que a aplicação da tese do marco temporal pelo Judiciário e especialmente pelo STF violava e viola os direitos humanos dos povos indígenas.  Para a relatora, aplicar o marco temporal sem considerar como ou por que os povos indígenas foram retirados de suas terras significaria impor restrições de direitos humanos para os povos indígenas. "Com o marco temporal, o Estado contraria a sua Constituição, expulsa os povos indígenas de suas próprias terras, impede o gozo de direitos básicos e alimenta a violência contra eles”, afirmou Tauli-Corpuz. O pleito pela redução dos direitos mais fundamentais dessas populações – com impacto direto sobre a identidade cultural, a qualidade de vida e a própria sobrevivência física de indígenas e quilombolas – ganha, no entanto, cada vez mais força por meio de pressão da bancada ruralista e evangélica em cima do atual governo. Essas bancadas são proponentes e defensoras de projetos de leis e emendas constitucionais que exatamente visam reduzir direitos constitucionais de povos indígenas e quilombolas abrindo terras para a grilagem e a descontrolada exploração de recursos naturais. Por isso, para os movimentos indígena e quilombola, o julgamento dessas ações esta semana não é um mero acaso. Ainda assim, há esperança de que o STF reafirme sua independência e decida pela defesa dos preceitos constitucionais, inclusive para frear o ritmo com que o Estado avança na contramão de seus compromissos e obrigações internacionais de direitos humanos. Nas últimas décadas, tanto a Corte como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos estabeleceram farta jurisprudência sobre o reconhecimento dos direitos territoriais de povos indígenas e quilombolas baseadas em instrumentos internacionais vinculantes como a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Em suma, para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, os países devem contar com legislação e procedimentos administrativos adequados para garantir a titulação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas ou quilombolas. De acordo com a jurisprudência internacional, essa ocupação não se define por um marco temporal mas pela relação física, cultural, espiritual e ecológica que as comunidades mantêm com seus territórios e difere-se portanto radicalmente da definição de posse civil. Indígenas em ato em frente ao STF, também em junho passado Particularmente, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem avançado no reconhecimento e proteção dos direitos territoriais indígenas e tribais como direitos fundamentais, ou direitos humanos de caráter coletivo, que se relacionam inclusive com o direito à não discriminação, o direito à identidade cultural, o direito à vida, e à proteção contra deslocamentos forçados de indígenas e quilombolas, dentre outros. Entendimentos similares já foram manifestados no Brasil, tanto jurisprudência do próprio STF – desde o ilustre voto do ministro Ilmar Galvão (1961) – como nos avançados procedimentos administrativos de identificação, delimitação e demarcação de terras indígenas (1992 e 1996). Esses procedimentos ainda em vigor se fundamentam em estudos circunstanciados e multidisciplinares conduzidos pela Funai, além de considerar o direito ao contraditório de outros sujeitos interessados no processo administrativo. A demarcação conduzida pela Funai, portanto, abarca aspectos históricos, antropológicos, ambientais, ecológicos, sociais, culturais e econômicos visando garantir por um lado a reparação do esbulho territorial provocado por políticas assimilacionistas no passado, e por outro a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas de acordo com seus modos de vida e organização numa perspectiva de futuro. Por isso mesmo, muitos países das Américas se inspiraram no modelo de reconhecimento e demarcação de terras indígenas no Brasil, inclusive para implementar decisões do próprio Sistema Interamericano de Direitos Humanos, como é o caso da Nicarágua, de Belize e do Paraguai. Não seria exagero afirmar que um eventual retrocesso no âmbito do STF abalaria os direitos dos povos indígenas também numa escala regional e internacional. Agora, caso o STF aplique a tese do marco temporal nos casos em pauta esta semana, estará falhando com seus compromissos e obrigações internacionais de direitos humanos. Nesse sentido, o governo brasileiro recebeu na semana passada um comunicado da Comissão Interamericana de Direitos Humanos reafirmando seu entendimento sobre a proteção dos direitos territoriais como uma questão de direitos humanos e questionando sobre a situação das demarcações de territórios quilombolas no País. Alguns meses antes, questionamentos semelhantes foram apresentados a representantes de Estados em audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre a situação das terras indígenas. Vale lembrar que em junho de 2017 o STF, juntamente com juízes e presidentes de outros tribunais constitucionais da América Latina, firmou uma carta para mente "expressar a relevância da jurisprudência da Corte Inter-Americana de Direitos Humanos no desenvolvimento dos direitos fundamentais”. Na América Latina, cortes constitucionais se destacam cada vez mais no reconhecimento, pelo menos formal, dos direitos dos povos indígenas em linha com os padrões internacionais de direitos humanos.   As cortes supremas de Belize, Colômbia e México, por exemplo, já incorporaram em sua jurisprudência o uso da Declaração da ONU para casos envolvendo terras indígenas e o uso de recursos naturais. No Chile e na Argentina, casos envolvendo o direito territorial de comunidades Mapuche foram resolvidos pelas cortes nacionais fazendo referência ao entendimento da obrigação de demarcar e proteger terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas e que garantam a identidade e a cultura do povo, independentemente de um marco temporal. Essas decisões de países vizinhos reconhecem o processo histórico de esbulho praticado contra comunidades indígenas que impediu a posse (civil) sem nunca cortar a relação desses povos com as suas terras. Nas Américas como um todo, consolidou-se o entendimento de que o reconhecimento e a demarcação de terras e territórios indígenas e quilombolas corresponde a uma ação de reparação e reconciliação dos Estados com essas populações e com seu próprio passado de atrocidades, violências e graves discriminações. Por isso, entendemos que não aplicar o marco temporal para casos indígenas e quilombolas é uma exigência para se romper com práticas de discriminação racial no Brasil e promover um paradigma de conciliação com os povos indígenas. Afinal, o que o marco temporal faz alem de impedir as demarcações de terras indígenas e quilombolas é negar o direito de existir e de ter identidades culturais diferenciadas. Em meio a atos de reza e resistência, os povos indígenas e a sociedade nacional ainda deposita no STF a esperança de que sejam encontradas soluções para os históricos conflitos territoriais no Brasil, de maneira a reafirmar e não retirar direitos dos povos indígenas e das comunidades quilombolas.   *Erika Yamada é relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca. É perita do Mecanismo de Peritos da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas. As opiniões expressas aqui são pessoais e não refletem um posicionamento do Mecanismo Fonte: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/marco-temporal-stf-pode-barrar-abusos-contra-indigenas-e-quilombolas/@@amp

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