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Yuri Sousa Aurélio, 29 anos, Bruna Damasceno de Sousa, 30 anos, Cilene Pereira, 52 anos, Edson Araki, 56 anos, Fabiana Pighini, 37 anos, Luana Farias, 36 anos. Dar o nome e sobrenome das pessoas que aparecem nas fotos desta reportagem é uma obrigação jornalística. Nesse caso, no entanto, é acima de tudo a forma de evidenciar por meio das histórias desses seis indivíduos a importância de apenas um gesto para que a vida continue. De outro jeito, é verdade, mas ela continua. Todos foram beneficiados por doações de órgãos imprescindíveis para que pudessem continuar seus caminhos. Sem o ato de generosidade de alguém que não conhecem — e que não os conhece — certamente não estariam aqui estampando o sorriso que ilumina esses retratos. As fotos farão parte de uma exposição a ser montada em São Paulo como parte de um pacote de iniciativas para estimular a doação de órgãos no Brasil. A decisão de exibir as cicatrizes intenciona, também, quebrar o conceito equivocado de que corpo bonito é corpo sem marcas. A ideia da mostra partiu da Bruna, que passou por quatro transplantes (três de fígado e um de rim), necessários por causa de complicações causadas por uma doença metabólica, e do cantor Bruno Saike, ativista e idealizador da ação #Juntos pela doação de órgãos. Na quinta-feira 27, comemora-se o dia da Nacional de Incentivo à Doação de órgãos, e até lá serão realizadas outras ações. Do movimento #Juntos, por exemplo, incluem-se o lançamento nas plataformas digitais de uma coletânea com gravações de artistas como Pitty, Ira! e He Saike e um ato na quarta-feira 26, na Arena Corinthians, antes do início da semifinal entre Corinthians e Flamengo pela Copa do Brasil. A Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) também preparou um calendário de eventos que terá seu ponto alto no dia 27, com a iluminação em verde (cor da campanha) do prédio da FIESP, na Avenida Paulista.
São ações mais do que necessárias. Entre janeiro e junho, quase 33 mil adultos aguardavam por um órgão, segundo a ABTO. Crianças somavam 706. A fila maior é para rins, seguida pela de fígado e de coração. Dos 5,4 mil adultos que ingressaram na lista no primeiro semestre, 728 morreram. Das 159 crianças, 7 perderam a vida antes que conseguissem uma doação. Falar em doação de órgãos é daqueles assuntos sobre os quais ninguém quer conversar a respeito. Discutir o tema lembra a morte e, por isso mesmo, é compreensível que cause desconforto. Mas é nessa mudança de comportamento que residirá boa parte da virada de jogo para tirar muita gente da espera e tornar o Brasil mais solidário. O número de pacientes que aguardam por um transplante só é tão alto porque, basicamente, faltam doadores. Capacidade técnica, em gente e em equipamentos, o País possui. “Poderíamos aumentar o total de cirurgias porque os hospitais têm estruturas muito bem estabelecidas”, afirma o cirurgião André Ibrahim David, do Departamento do Transplante de Fígado da ABTO. É verdade que há deficiências, como limitações nos hospitais para o reconhecimento de potenciais doadores e sua notificação à central de Transplantes. Mas é fato que times bem organizados — médicos, enfermeiras, assistentes sociais, psicólogas, nutricionistas — trabalham com maestria desde a captação de órgãos até a recuperação do transplantado. Um belo exemplo é a equipe chefiada pela enfermeira Vanessa Gonçalves, coordenadora de uma das quatro que atuam na capital paulista na captação de órgãos. Ela comanda uma espécie de esquadrão da vida acionado sempre que chega ao serviço a informação de um possível doador nos hospitais. Momento difícil e decisivo
E é aí, com treinamento e sensibilidade, que começa um trabalho que, horas depois, pode transformar a morte em vida novamente. Vanessa e seu time têm a missão de explicar aos familiares que órgãos da pessoa que acabam de perder podem ser doados se apresentarem condições para tal. Antes de abordar a família, é preciso identificar a reação emocional dos envolvidos e aproximar-se quando for possível. É um momento difícil, mas decisivo. Ainda atordoados pela notícia do falecimento, os familiares precisam entender conceitos como o de morte encefálica — completa e irreversível parada das funções cerebrais — e decidir se permitem a doação.Só quem pode autorizar são parentes em até segundo grau, cônjuges ou companheiros. Em geral, quatro em cada dez famílias não permitem a doação. Nos primeiros seis meses do ano, o índice médio de recusa no País foi de 43%. No Mato Grosso, 90% disseram não à doação. O mais impressionante é que 60% das negativas acontecem porque a família simplesmente não sabe se a pessoa queria ser doadora. Na dúvida, prefere manter o corpo preservado. Quando as pessoas sabem do desejo que o indivíduo tinha de doar, a autorização é dada sem vacilação. É uma forma de cumprir o último desejo de quem partiu. Às vezes, os familiares intuem a opção por doar, como foi o caso de Sérgio Miwa quando seu pai, Setsuo Miwa, morreu, há dois anos. “Ele foi uma pessoa que ajudava os outros. Achei que gostaria de ter ajudado mais uma vez”, conta Sérgio. A doação de Setsuo salvou três pessoas.
ESQUADRÃO da vida Vanessa (ao centro) lidera uma das quatro equipes da capital paulista que faz a captação de órgãos (Crédito:Marco Ankosqui)
Por essa razão, um dos esforços é estimular que as pessoas digam, principalmente aos familiares, que desejam ser doadores. “Informe a sua família sobre seu desejo”, diz a enfermeira Vanessa. Em outra frente, especialistas envolvidos na batalha pelo aumento dos transplantes lutam pela criação de um estatuto do doador com medidas que possibilitem, por exemplo, que as pessoas registrem seu posicionamento. “Também pensamos em criar um aplicativo por meio do qual o usuário registre que é doador. Pode servir de fonte de pesquisa para a família se solicitada a doar os órgãos do parente falecido”, conta o cirurgião André Ibrahim. Colocar-se à disposição para salvar vidas, portanto, é mais simples do que parece. É só dizer “Sim, sou doador. Eu recebi um fígado. E dei o meu à outra pessoa
Eu sou a Cilene Pereira que assina a reportagem sobre a importância de doar órgãos e a Cilene Pereira que aparece no início do texto, na lista dos transplantados. A foto é minha e faz parte da exposição programada para acontecer na Arena Corinthians, na quarta-feira 26, antes da semifinal entre Corinthians e Flamengo pela Copa do Brasil. Em 31 anos de jornalismo, jamais imaginei que um dia eu seria personagem da minha própria matéria. Personagem, no jargão jornalístico, é a pessoa que serve para ilustrar uma história. Mas aqui estou eu contando minha trajetória mente para, quem sabe, contribuir para que o número de doações cresça no Brasil, ajudando mais gente que, como eu, dependia de um transplante para que a vida seguisse como deve seguir. Sou portadora de Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF), doença neurodegenerativa rara de origem genética. A mutação provoca uma alteração estrutural na proteína transtirretina, produzida principalmente no fígado, tornando-a instável. O resultado é que ela acaba se depositando sobre diferentes tecidos, provocando danos sistêmicos que vão de prejuízos cardíacos à perda progressiva de movimentos, à atrofia muscular e a outra série de efeitos que fazem a vida do paciente minguar aos poucos. Sem tratamento, pode levar à morte em dez anos.
Não foi um diagnóstico fácil, como não são fáceis os diagnósticos de doenças raras. Contei com a sorte de ter sido atendida, de pronto, quando os sintomas apenas se insinuavam, pelo cardiologista Bruno Bueno, do Hospital Samaritano, em São Paulo. Competente, atencioso e dono de um raciocínio diagnóstico impressionante – assim como de um bom humor que tornou tudo mais leve -, Bruno persistiu na busca de respostas e me guiou durante um ano e oito meses até que descobríssemos o que eu tinha. O transplante de fígado foi a primeira forma encontrada pela medicina para impedir ou retardar a progressão da enfermidade. Hoje, há medicações que atuam no mesmo sentido, uma delas disponível no País. Cheguei a experimentá-la, mas aparentemente não houve benefício para o meu caso. Decidimos pelo transplante como forma de barrar a evolução da doença que roubaria minha autonomia. Sou jornalista, mãe de três filhos, inquieta, inconformada com platitudes, curiosa e apaixonada por conhecer pessoas e lugares, como mandam minha profissão e minha personalidade. Não andar e depender de alguém para cuidar de mim a essa altura da minha vida me apavorava.
De repente, me vi na condição que descrevera em reportagens sobre gente que esperava na fila do transplante. Mas desta vez era o meu nome que estava no registro da Central de Transplantes e era eu que entrava periodicamente no sistema para saber se minha vez estava próxima. A espera durou cerca de três meses. Recebi o telefonema de que haviam achado um doador no início da manhã do dia 14 de setembro do ano passado. Doze horas depois me deitava na mesa cirúrgica do Hospital Samaritano para fazer o transplante, conduzido com excelência pela equipe do cirurgião André Ibrahim David. Por uma peculiaridade da minha doença, meu fígado não servia para mim, mas servia para outro paciente. Por isso, passei pelo o que os médicos chamam de transplante dominó, uma modalidade possível somente nos casos de PAF e de outras formas de doenças metabólicas genéticas do fígado. Na mesma noite em que recebi um fígado novo, doei o meu para outro paciente, que aguardava por uma nova chance de vida no Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP), localizado a apenas alguns quilômetros de distância do centro cirúrgico onde eu estava. Os cirurgiões retiraram o meu fígado e o entregaram para os colegas do HC/SP. Naquela noite, duas pessoas ganharam uma chance de seguir com a vida. Eu, graças à doação que havia recebido. O paciente do HC/SP, graças ao fígado que eu havia doado.
Nunca na minha vida havia pensado que um dia eu precisaria de um transplante – exceto pacientes com doenças que se manifestam cedo, ninguém em sã consciência pensa que um dia estará nessa situação. Por isso, em meio à agitação estranha aos nossos olhos de pacientes dentro da sala de cirurgia e à ansiedade com o que estava por vir, fiz uma pausa por alguns segundos. Fechei meus olhos e agradeci do fundo do coração à pessoa de quem eu receberia o fígado. Como é de praxe, não sei quem foi meu doador. E também não sei quem recebeu o meu fígado. Na verdade, isso não importa. O que importa é que por causa de uma doação de órgão eu sigo com minha vida, com as alegrias, os fracassos, os encantamentos, as angústias e as esperanças que fazem dela algo tão fascinante e desafiador. E torço muito para que a pessoa que recebeu meu fígado esteja, como eu, feliz e pronta para a vida que há para ser vivida.